Halina Birenbaum
A Vida Como
Esperança
Translated to Portuguese
by Judith Orensztajn
Fizeram-nos entrar no Umschlagplatz, o
mesmo maldito Umschlagplatz, ensopado de sangue e de lágrimas, carregado
de apitos das locomotivas e trens que levavam daqui milhares de judeus para a estação final de suas vidas. O terreno
enorme, nas proximidades da escola que havia aqui antes da guerra, estava
coalhado por uma multidão desesperada e nervosa. Em sua maioria, eram
operários nas fábricas situadas no lado ariano – portadores de
passes, que até há pouco tempo atrás tinham o “direito de
viver”… e hoje, na hora em que voltaram do trabalho, acompanhados pelos S.S.,
haviam caído na armadilha.
Um muro muito alto e a muralha viva
constituída por uns policiais alemães, poucos porém
armados até os dentes, os separava do gueto e de seus esconderijos.
Ficaram lá: meu irmão mais velho e minha tia
com sua filha, que não haviam querido sair à rua conosco naquele
dia.
Nós
olhávamos tensamente, procurando uma saída. Meu pai nos puxou para próximo de si, beijou
minha mãe, o Hilek e a mim, agarrou nossa mão e não deixou
que nos afastássemos dele nem um passo, minha mãe andava de um
lado para o outro, sem parar, tentando nos separar da multidão e nos
fazer escapar de alguma maneira para dentro da escola, onde ficava a
ambulância e a polícia judaica. Ela queria se esconder ali, impedir que nos empurassem para dentro dos
vagões.
Meu pai estava nervoso e amedrontado, e
não consegui pensar num modo de nos salvar: a
única coisa que lhe interessava era mostrar aos alemães o passe
que tinha. Até o último instante ele acreditou
que com aquele passe poderia nos salvar a todos, pensando que a
desobediência aos alemães poderia apressar nosso fim.
Minha mãe era
diferente, e por isso eu ficava sempre junto dela, convencida de que seria ela
quem encontraria para nós uma saída nos piores momentos … ao lado
de meu pai eu sentia justamente o contrário. Agora, na Umschlangplatz,
passava-se comigo a mesma coisa.
Nunca haviam trazido
vagões àquela hora.
Pensamos que talvez tenhamos que esperar toda a noite na
Umshlagplatz, até que chegue o trem da manhã. Isto nos daria algumas possibilidades
de fuga, de retornar ao gueto, ao sótão …
Num dado momento vimos que os nazistas
haviam colocado no centro da praça, diante de nós, uma
metralhadora apontada para a multidão ali
concentrada em grande aperto; ouviu-se um sussurro de pânico. Porém, embora todos soubessem o que estava para acontecer,
ninguém ousou gritar ou romper em pranto. Novamente
fez-se um silêncio mortal, eletrificado. Nós nos
abraçamos: minha mãe, meu pai, Hilek e eu; olhamos um para o
outro,
Meu pai estava a ponto de desfalecer;
minha mãe, calma
Não, eu
não estava com medo, apenas não podia acreditar. Não conseguia compreender o
que significa morrer. Não podia conceber que
nunca mais existiremos, que deixaremos de viver. Estava
além da minha capacidade de compreensão.
Esperei o que estava para acontecer com
esperança, fé na vida e … curiosidade.
Sentia-me envolvida por uma atmosfera estranha, quase festiva: aquele instante
pareceu-me extremamente elevado e importante, mas não porque ele
precedia o nosso fim …
De repente, ouviu-se o
apito da locomotiva.
Os vagões
chegaram. A
metralhadora já não era mais necessária. Provavelmente, os planos haviam sido modificados. Não
vamos mais ser mortos ali, trouxeram para nós
um trem com destino a Treblinka!
Os policiais judeus começaram a espancar todo mundo com seus cassetetes, empurrando a
multidão em direção aos vagões.
Minha mãe me
agarrou pela mão e começou a recuar em sentido contrário. Puxava atrás dela o Hilek, a
mim e a meu pai, empurrando de si os policiais, aguentando com
indiferença as cacetadas. A única
coisa que importava era afastar-se dos vagões! Ela
pretendia se esconder por enquanto num canto qualquer da Umschlagplatz e depois
voltar às escondidas para o gueto. Meu pai e
meu irmão preferiam ir para o trem junto com os outros; temiam fugir, e
pensavam que ao lado do trem os alemães examinarão o passe do meu
pai e nos libertarão. E se não nos
libertarem – viajaremos juntos no mesmo trem, teremos o mesmo destino que todos
os judeus que estão aqui. “Eu não quero vê-los
atirando em vocês”,
dizia Hilek, em desespero, tentando se desprender de mim e de
minha mãe. Dizia, com lágrimas nos olhos, que aqueles assassinos
revistam todos os esconderijos possíveis na
Umschlangplatz, depois da saída do transporte, que os conhecem de cor,
pois ele mesmo, Hilek, havia retirado dos esconderijos os corpos dos mortos …
Mas seus argumentos foram em vão. Minha mãe
estava convencida de que é preciso lutar até o fim, não
deixá-los que nos empurrem para os vagões! “A gente ainda acaba
chegando lá”, disse resolutamente, “sempre há tempo para chegar
lá …”.
Teimosamente, foi
abrindo caminho no meio da multidão, puxando-nos com força em
direção à escola. Segurava com as mãos a mim e a Hilek; meu pai, querendo ou
não, foi atrás de nós até que, subitamente, uma
onda de cacetadas abateu-se sobre suas costas encurvadas. Foi
cercado por policiais judeus que o espancavam e empurravam para o trem. Meu pai tentou se defender, suplicar. Cobriu-se com as
mãos, tentou se livrar, mas não tinha
Porém lá,
ao lado dos vagões, ninguém mais examinava documentos.
Pela última vez vi
meu pai, caminhando encurvado, indefeso, sob as cacetadas dos policiais, na
direção do trem … tinha então quarenta e sete anos.
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Halina Birenbaum Ela esperou Ela esperou por mim no caminho Ela esperou por mim no caminho de Maidanek Aqui cheguei de outra terra Ao subir pelo caminho senti sua presença Maidanek, reino da morte adormecido Sentei-me no caminho. Segurei a cabeça entre
as mãos Não sei |
Halina Birenbaum
Majdanek
Soprava uma ventania
fria e cruel.
Nós estávamos no meio de
uma enorme praça, coalhada de mulheres e crianças, tremendo de frio e cansaço. Mas não era
isso que contava agora, depois de termos sido separadas de Hilek. Os homens tinham sido levados para outro lugar, não
sabíamos para onde. Não tínhamos
a mínima idéia para onde seríamos levadas ou o que fariam
conosco.
Era quase meio-dia. Os
nazistas iam separando da multidão grupos de pessoas, levando-as para
uns barracões não muito distantes. O que havia naqueles barracões? Ninguém
voltara de lá e não podíamos saber.
Minha mãe havia me embrulhado com
seu casaco e me segurava junto a ela, carinhosamente.
O vento jogava-nos areia nos olhos, era tão forte que por custo nos
aguentávamos, depois de tantas horas de pé ali
na praça, de tantas noites sem dormir, depois do pesadelo que fora a
viagem no vagão. Eu pensava: seja lá o que for, só que
essa tortura termine … Já não me importa o que nos farão!
Minha mãe
alisava minha cabeça, consolando, acalmando. “Mais um pouquinho de paciência”, me disse,
“daqui a pouco vão nos levar aos chuveiros, vamos tomar banho e trocar
de roupa, depois iremos para o campo, para aqueles barracões que vemos
daqui, do outro lado da cerca de arame farpado. Lá
nós vamos descansar, e depois com certeza vão nos mandar para
algum trabalho”.
“Você acha que não
vão nos matar?”, eu perguntei.
“Lógico que
não”, respondeu. “Pois se
no caminho nós vimos prisioneiras com roupas listradas e agora
nós as vemos de longe, por trás da cerca do campo”.
“E nos barracões há camas e
cobertores, e comida?”, perguntei.
Influenciada pelas
palavras de minha mãe, eu comecei a sonhar com os chuveiros e os
barracões. Lá eu vou descansar, matar a fome e me esquentar. Irritei-me com o fato da fila se mover tão devagar.
Quanto tempo ainda vai levar até chegarmos aos tais
dos chuveiros, para onde os nazistas mandavam o tempo todo novos grupos de
mulheres…?
Se eu pudesse saber que aquelas horas ali na praça eram as últimas que eu passava
com a minha mãe! Que estas eram as últimas horas de sua vida! E
eu ainda estava ansiosa para que chegasse logo o momento de entrar naqueles
chuveiros, naquele campo!
Finalmente, chegou a nossa vez. Os nazistas formaram um grupo com a Hela, a Halina, eu e a Ada Vilner, prima da Hela, graças a quem tínhamos conseguido um lugar no bunker de Mila. Lembrando-me do conselho de Hilek, de não me apoiar na minha mãe, peguei o braço da prima gordinha, que ela mesma tinha oferecido (ela não conseguiu sair de Maidanek: foi uma das primeiras do nosso grupo que morreu no campo). Minha mãe foi atrás de nós com a Hela, e eu nem me virei para ver o que estava acontecendo com elas, estava concentrada em dar um passo atrás do outro, pois cada um deles me causava uma dor lancinante … Até hoje eu não sei quando e como dei por mim lá dentro do enorme barracão, onde havia pilhas enormes de roupas e sapatos, do chão até o teto. Os alemães mandaram que nos despíssemos completamente, jogando na pilha todas as roupas, menos os sapatos. Hela trocou os sapatos leves que tinha por um par de botas, que havia tirado secretamente da pilha de sapatos. Insinou que eu fizesse a mesma coisa; mas eu estava com medo e muito deprimida. Nada me interessava naquele momento, eu não tinha nem força para pensar naquela porcaria de sapatos …
Empurrada por centenas de mulheres nuas,
eu cheguei num dado momento aos chuveiros. “Os chuveiros!”,
pensei alegremente. Se já estamos nos chuveiros, daqui
a pouco iremos para o barracão aquecido. Minha mãe tinha
razão: não vão nos matar, vamos viver e trabalhar, que
bom!
|
Tive vontade de me agarrar
ao pescoço de minha mãe, de Hela olhou para mim, vi
suas faces deprimidas, depois ela baixou a cabeça e, embora tenha dito
num sussurro, eu ouvi claramente: “Sua mãe não está …”. Senti |
Pois se todas as nossas conhecidas da
Umschlag estavam ali! Minha mãe é jovem,
com suas faces coradas ela parece mais saudável e bonita
do que as outras mulheres, pelo menos é o que eu pensava. E logo ela eles levaram? Não podia de jeito nenhum me
conformar com a idéia de que ela se foi
realmente, que nunca mais vou vê-la! A todo momento eu olhava na direção da porta. Ela tem
que entrar já, me abraçar, me acalmar. Mas
a mamãe não entrou. Eu fiquei dando
“De agora em diante, eu sou a sua
mãe, você compreende?”, disse-me com
decisão.
Majdanek Extermination Camp – the State Museum
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